De ontem e de hoje – Coisas velhas
por Licínia Quitério
Nas casas sempre habitam coisas velhas, antigas, gastas, feridas pelo tempo, pela desatenção, preteridas pelas novas recém-chegadas, com outro brilho, outra utilidade, diferentes no desenho e na cor. Nas mudanças de casa, nas mudanças de gente, escaparam à devora de usurários e ao lugar dos lixos. Foram-lhes concedidos sótãos esconsos, gavetas, arcas de memórias.
Quando chegaram até mim, procurei-lhes as feridas, tratei-as como pude, fui espreitando as marcas que me contassem histórias de outro tempo, de outra gente. Por vezes tive um certo pudor em as modificar, em lhes dar novos casamentos, lugares desajustados à função.
A máquina de costura não devia ter ficado num corredor sem janelas, mas há tanto tempo que ninguém cose nela.
A litografia da menina com o crisântemo e a foto do antepassado trocaram de molduras, a dele mais sóbria, de acordo com o olhar severo, a dela, dourada e romântica, fica-lhe a matar.
A mesa de cabeceira foi despromovida por falta de cama e cabeceira, mas suporta um vaso com planta viva, a dar-lhe novo alento.
A cadeira, coitada, já não oferecia segurança a quem nela se sentasse e tinha rugas, manchas da provecta idade. Dei-lhe um banho de azul, rejuvenesceu, sustenta com garbo antigas toalhas rendadas e um búzio que lhe dê um sopro de mar.
Pelas gavetas foram encontradas frivolidades de pano e linha, lenços que enfeitaram lapelas de damas e cavalheiros, luvas e golas de menina, roupinhas minúsculas que sobraram de enxoval de criança, e mais e mais peças confeccionadas por rendeiras, bordadoras, trabalhos exímios de mãos de mulheres. Hoje estão todas juntas num quadro com moldura de madeira em que fixei uma chapinha de metal a dizer, em letra cursiva, “Modas e Bordados”.
São tesouros, são bagatelas, são vida que gosto de contemplar, afagar, numa linguagem entre tempos que só os velhos entendem.
Licínia Quitério
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